Artigo Judiciário no período militar

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Artigo "Judiciário no período militar"

O JUDICIÁRIO NO PERÍODO MILITAR

Nilza Menezes

 

Coordenadora do Centro de Documentação Histórica do TJRO.

 

Resumo

O presente artigo apresenta uma reflexão do comportamento dos magistrados dos territórios federais à época do regime Militar. Fazendo uso de trechos de entrevistas do Acervo de História Oral do Tribunal de Justiça com promotores de justiça, juízes e advogados que atuavam naquele período, vamos observar como foram os processos de cassação dos magistrados no Território Federal de Rondônia.

Fazendo uso de informações em entrevistas que fazem parte do Acervo de História Oral do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, serão feitas algumas reflexões sobre a posição do judiciário e dos juízes dentro de um período marcante da história brasileira no século XX: o período que ficou conhecido como os anos de chumbo, ou período do regime militar, demarcado pelos anos que vão de 1964 até o final dos anos 70, lembrado como um tempo de acontecimentos marcantes para a história contemporânea brasileira.

São tomados por base depoimentos de juízes federais, que, à época, prestavam serviços nos Territórios Federais de Roraima, Amapá e Rondônia e também em observações feitas por advogados sobre a postura dos juízes no período, o que nos oportunizou observar como era o entendimento de uma classe que praticamente não se manifestou, mas que possuía uma posição sobre o momento político brasileiro.

Os magistrados são tidos como uma classe não afeita à exposição, uma instituição até pouco tempo completamente fechada. Entretanto, recentemente, começaram a aparecer pesquisas feitas a partir da documentação do judiciário, surgindo também na última década, em vários Estados, os Centros de Memória e Documentação, em alguns casos museus, disponibilizando fontes que proporcionam novas leituras e colocam à disposição dos pesquisadores documentos antes inacessíveis.

Essa mudança ocorre em razão de mudanças nos focos de interesse da historiografia e dos pesquisadores e historiadores que passam a fazer uso de uma fonte antes não utilizada, os documentos judiciais, havendo por parte do próprio Poder Judiciário o interesse em oferecer essa documentação, o que faz parte de uma política de abertura adotada que busca afrouxar a aparência formal, num processo de transparência para que se possa melhor conhecer a instituição.

Sem nos aprofundarmos na questão, ela ocorre por iniciativa do Poder Judiciário, que abre seus Centros de Memória e Museus dando a possibilidade de utilização de documentos antes não do interesse de historiadores ou não disponibilizados pela Justiça. Assim, surge o interesse da história por essas abordagens, apresentando novas possibilidades de diálogos e de interpretações.

Com o período que se caracterizou pela tomada do poder, o que aconteceu com o apoio da classe média, o país vai viver os anos mais dolorosos da nossa história. Conforme Boris Fausto, a partir do golpe em 1964, o país passa a viver sob normas dos Atos Institucionais que atingiam os direitos dos cidadãos e também o Congresso e o Judiciário. No caso do Judiciário, que esteve nesse período completamente a serviço dos interesses do governo, só no ano de 64 foram expurgados 49 juízes (Fausto: 2000).

Com a comemoração dos 30 anos do estranho ano, em 1998, quando os participantes do processo foram considerados “demonizados”, as vozes começaram a se soltar proporcionando uma visão mais ampla dos fatos (Reis: 2000).

Os projetos de História Oral trazem para a cena vozes desconhecidas. No caso presente, as vozes dos juízes de Direito, à época Juízes Federais a serviço nos territórios, que nos permitem observar o olhar que eles tinham sobre a situação e a posição que mantinham para sobreviverem dentro de um regime autoritário.

O colaborador Desembargador Aldo Castanheira, que exerceu o cargo de Promotor de Justiça no Território Federal de Roraima de 1962 a 1972 e em Rondônia de 1972 a 1982, quando foi nomeado Desembargador na criação do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia em razão da transformação de Território em Estado da Federação, informa: “A estrutura judicial funcionava com juízes e promotores vinculados à Justiça do Distrito Federal”.

O Desembargador Hélio Fonseca, que chegou em Rondônia no ano de 1959 para ser promotor público e que assumiu como Desembargador na criação do Poder Judiciário comenta sobre o período:

Naquele tempo a justiça daqui era subordinada ao Rio de Janeiro e, depois de 1960, passou para Brasília. O Tribunal ficava muito distante e não dava a menor confiança para a justiça local.  Tinham a justiça dos territórios como de segunda classe. Isso desestimulava os juízes e promotores. Quem vinha para cá não tinha nem o direito de promoção. Era nomeado Juiz e jamais chegaria a Desembargador do Tribunal de Justiça e o promotor daqui jamais seria promovido para Brasília para chegar ao cargo de Procurador. Então a carreira morria aqui. Não se tinha um apoio psicológico, desanimavam.

 

A posição do judiciário com relação ao regime foi de estar a serviço do governo, o que não impedia que muitos juízes tivessem opinião própria e mesmo que, em algumas ocasiões, manifestassem suas idéias em decisões. Quando essas idéias não eram de interesse do governo, podiam ser punidas severamente.

Embora não se manifestando, ou não contrariando os interesses do poder central, eles tinham consciência do papel que ocupavam. Aqueles que ousaram tomar qualquer atitude que veio desagradar à elite sofreram as penalidades que faziam parte do sistema naquele momento. No caso dos juízes que passaram pela judicatura no então Território Federal de Rondônia, a pena foi a de cassação.

Dois juízes foram cassados: o Dr. Joel Quaresma de Moura na década de 60 e o Dr. Antônio Alberto Pacca na década de 70. Ambos já faleceram.

Sobre o assunto nada se registrou na documentação do judiciário, mas, conforme comenta o advogado Pedro Origa sobre a cassação do Juiz Antonio Alberto Pacca, o fato ocorreu por meio de um procedimento completamente inquisitorial.

Não houve para a sua cassação um processo com ampla defesa. Eu digo, aquilo não foi defesa. Você responder as indagações de um inquisitor ou inquisidor, ardentemente preparado para punir (conseguir a confissão), não pode ser processo legal. Sem que se soubesse o que realmente existia de prova contra a pessoa (depoimentos, documentos). Ninguém assistia os depoimentos, eles eram feitos de forma secreta, quer dizer inquisição mesmo.

Com relação à cassação do Dr. Joel Quaresma de Moura, quem comenta o assunto é o Desembargador Aldo Castanheira que assim o descreve:

Em 1972 quando cheguei aqui, já conhecia de nome o Dr. Joel Quaresma de Moura, que foi juiz por muitos anos e era um cidadão de respeitabilidade impressionante, uma figura extraordinária, apesar de viver em uma região isolada, era um gênio. Eu o conheci quando cheguei aqui, ele estava como advogado porque tinha sido cassado por conta da revolução. Quanto ao processo de cassação dele, até hoje não sei o que aconteceu.

 

Todos os colaboradores fizeram comentários sobre o período militar e a cassação dos dois magistrados no Território Federal de Rondônia. Todos afirmam que eles foram cassados por conta do regime militar, no entanto não possuem informações detalhadas sobre o fato, o que é natural.

Observamos que os dois juízes federais estavam exercendo as funções no Território Federal de Rondônia. Tanto Antônio Alberto Pacca como o Joel Quaresma de Moura apresentam pela documentação uma atuação forte quanto à quantidade de trabalho. Não tendo sido, portanto, a incompetência o motivo da exoneração, mas possivelmente tenha sido provocada por questões ideológicas.

Algumas informações dão conta de divergências desses juízes nas decisões tomadas com relação ao INCRA, outros falam em improbidade, mas, mediante observações feitas por juízes aposentados e advogados que à época exerciam as atividades, vamos perceber que dentre os membros do judiciário havia discordância e atitudes contrárias que foram punidas.

Ao lembrar o Juiz Antonio Alberto Pacca, o advogado Pedro Origa, que chegou na região no ano de 1971 e tomou conhecimento dos fatos, esses se deram pelos seguintes motivos:

Sua visão era dos juizes da época, era um magistrado positivista. Existia a lei, e ele tinha que cumpri-la. O INCRA achava que a lei era ele. Como o processo revolucionário vinha se acumulando, ele foi objeto de um processo altamente inquisitorial que culminou com a sua cassação.

Explicando melhor a questão, comenta:

 

Com a chegada do desenvolvimento, o INCRA entendia que não havendo o título ele podia fazer o assentamento. O Dr. Pacca entendia que a posse tinha de ser respeitada, que o INCRA não podia chegar como dono. Então, ele tinha noção que o papel dele como magistrado era o de preservar o direito individual, mesmo estando num período autoritário, altamente autoritário, Veja bem: ele era um homem de origem da direita, mas que resolveu preservar valores que aprendeu na vida e tornou aquilo que todos os perseguidos da revolução tornaram (Origa, 1999).

 

Joel Quaresma de Moura exerceu as funções na década de 60 e Antônio Alberto Pacca na década de 70. Sem juízo de valor, observamos nos dois casos uma produção expressiva em sentenças, despachos, uma atividade notável tanto em quantidade como em rapidez. Eles aparecem exatamente no momento de renascimento do judiciário da região, o que se dá em razão do incentivo da migração no início dos anos 60, conforme política adotada pelo governo federal.

Possuíam, segundo informações de advogados, personalidade forte, não se dobravam aos interesses políticos. O advogado Pedro Origa, que militava na advocacia no tempo em que Pacca era magistrado, comenta: “ele era uma pessoa que pensava nos pobres, que ficava do lado dos mais fracos, desagrava aos interesses dos grandes proprietários”.

O Desembargador aposentado Clemenceau Pedrosa lembra o período militar como um tempo em que se os juízes não fizessem a vontade dos grandes sofreriam a degola, e comenta a interferência em decisões. Fala que naquele tempo, tempo do AI-5, a magistratura não tinha estabilidade e que ficava a mercê da simpatia do Poder, não havendo garantias para o Magistrado que, no geral, acabava fazendo o jogo do poder. Nas suas palavras podemos perceber a carga que isso acarretava:

Minha vivência nos Territórios era difícil porque eu era só, não tinha contatos com outros juízes. Meus diálogos eram feitos em Belém do Pará com os Desembargadores do Tribunal de Justiça e alguns juízes. Naquela época, foi excepcional, estava em pleno desenvolvimento o Ato Institucional nº 5. Todas as garantias constitucionais da magistratura estavam suspensas. Qualquer juiz podia ser cassado com base no AI-5. As garantias da Magistratura, ou seja: vitaliciedade, inamobilidade e retroatividade de vencimentos estavam suspensas, conseqüentemente se contrariássemos os “poderosos” que eram os militares da época, estávamos sujeitos a sofrer uma degola. Recebíamos pressões a toda hora, mas graças a Deus nunca me submeti a essas pressões, sempre decidi com independência, mesmo sofrendo pressões tanto no Amapá como em Roraima. Em Rondônia nenhuma, graças a clarividência e o espírito público do governador Jorge Teixeira de Oliveira.

 

Sobre a cassação do Juiz Antônio Alberto Pacca, ele observa: “O Dr. Antonio Alberto Pacca, havia sido cassado pelo AI-,5 o que foi uma grande injustiça aqui em Porto Velho...”.

O advogado Pedro Origa, ao falar sobre a cassação do Dr. Pacca, informa:

 

O problema que ele enfrentou foi o de ter sido na época do arbítrio, apesar da seleção de juizes ser uma seleção onde o conteúdo ideológico era mensurado, isso não se tem como esconder, evidentemente quem tivesse participado do processo de 64 não seria juiz no período revolucionário. Quem quiser esconder, esconde, porque não está com vontade de dizer. Então, evidentemente, o Dr. Antonio Pacca não era um homem que se pudesse dizer de esquerda, mas era um homem com um senso muito grande de justiça, com uma percepção muito grande para decidir e com uma concepção muito grande do papel que desempenhava. O confronto básico dele foi em razão de representar um poder que era o Poder Judiciário, encarregado de dirimir conflitos naquela visão mesmo sua, e dos juizes da época, de um magistrado positivista.

Sobre a cassação do Juiz Alberto Pacca, o Desembargador Aldo Alberto Castanheira informa:

 

O Dr. Pacca foi colega de concurso do Dr. César Montenegro e do Dr. Clemenceau Pedrosa Maia. Trabalhei com ele muito tempo aqui em Porto Velho, era exclusive muito trabalhador, mas por um motivo ou outro, talvez seja um processo muito longo tocar nessa questão, ele foi se indispondo com o Capitão Silvio Gonçalves de Farias, o executor do INCRA em Rondônia. O Capitão era um homem forte na época, era ligado ao Conselho de Segurança Nacional. Por essas questões, os ânimos foram se exacerbando e parece que foi se complicando. Nas defesas que ele andou fazendo, segundo consta, não se saiu muito bem. A situação ficou complicada e ele acabou sendo cassado.

Os dois depoimentos, tanto o do advogado Pedro Origa como o do Desembargador Aldo Alberto Castanheira, trazem referências aos problemas políticos da época. Deixam claro que a questão que deu causa às cassações foram problemas relacionados à posição desses magistrados frente ao INCRA. De alguma maneira desagradaram do seu executor o Capitão Silvio Gonçalves de Farias que representava o Poder.

O Desembargador Clemenceau Pedrosa Maia, em sua fala deixa transparecer de forma clara o que representava contrariar o poder naquele período:

Naquela época, foi excepcional, estava em pleno desenvolvimento o Ato Institucional nº 05, o AI-5. Todas as garantias constitucionais da magistratura estavam suspensas. Qualquer juiz podia ser cassado. Vitaliciedade, inamobilidade e retroatividade de vencimentos estavam suspensas, conseqüentemente se contrariássemos os “poderosos” que eram os militares da época, estávamos sujeitos a sofrer uma degola.

 Sobre a estrutura do Judiciário nos territórios, o Desembargador Aldo Alberto Castanheira e Silva conta que: “O Judiciário existia nos territórios, e os juízes eram vinculados ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal”. Falando sobre os processos de cassação observa:

Na época tinha o CGI - Comissão Geral de Investigação no âmbito da justiça, cada Estado tinha uma sub CGI, geralmente comandada por um militar. Eram processos sigilosos, eles faziam coletas de depoimentos, às vezes nem isso e era mandado para Brasília, é claro que isso era negócio de regime forte. Muitas cassações talvez tenham sido até corretas, mas desta forma eram absurdas (Castanheira, 1999).

 

    

     Os depoimentos possibilitam-nos um outro olhar sobre o Judiciário. Conforme observamos na introdução, o Poder Judiciário permaneceu hermético ao longo da sua história, estando nos últimos anos à procura de novas formas de posicionar-se. Isso se apresentou latente conforme observamos em recente Seminário na cidade de Porto Alegre no Rio Grande do Sul, cujo tema era memória e historiografia institucional, organizado pelo Memorial do Judiciário. Além de discutir as questões ligadas aos problemas de arquivo e preservação de documentos, falou-se da posição hermética do judiciário. Colocando-se a questão de que muitas vezes a imprensa divulga notícias e o Poder Judiciário permanece silente, sendo um órgão do qual pouco se sabe, o que demonstra a necessidade de que este se mostre mais receptivo ao público.

Nos últimos anos, por meio dos museus e memoriais, o Poder Judiciário começa a disponibilizar sua documentação aos pesquisadores surgindo possibilidades de novas interpretações. Os Estados do Mato Grosso do Sul, do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, Rondônia, entre outros, já possuem seus acervos disponibilizados. Alguns casos ainda se encontram em fase de organização, sistematização e tratamento dos documentos, no entanto com a documentação sendo organizada, e a formação de acervos de História Oral, novas oportunidades de pesquisas e novas leituras em diversas áreas do conhecimento serão oferecidas.

Fontes: Depoimentos dos Desembargadores Clemenceau Pedrosa Maia, Hélio Fonseca, Aldo Alberto Castanheira e Silva e com o advogado Pedro Origa. As entrevistas encontram-se arquivadas no Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia.

 

Bibliografia

FAUSTO, Boris, História do Brasil. Edusp: São Paulo. 2000.

MEIHY, Jose Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 1999.

REIS, Daniel Aarão. Ditadura Militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

THOMPSON, Paul. A Voz do Passado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

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