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Artigo "Justiça e memória coletiva"

JUSTIÇA E MEMÓRIA COLETIVA

Nilza Menezes [1]

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A preservação da memória serve para criar identidade nas instituições além de marcar a evolução das atividades. E embora os espaços de memória nem sempre traduzam toda a complexidade impregnada no cotidiano, servem como proposta de aproximação da instituição com a comunidade.

Conforme observações do historiador Gunter Axt, do Memorial do TJ do Rio Grande do Sul, por meio dos espaços de memória disponíveis aos cidadãos é que os sujeitos se conectam e tecem suas teias de pertencimento social e a sociedade revela uma essência cultural “palpável” aos seus membros e aos de outras comunidades.

O Centro de Documentação Histórica desde o início de suas atividades em 1999, vem procurando desenvolver trabalhos de pesquisa com a produção de artigos na área da investigação histórica que contribuam significativamente com a interpretação historiográfica, buscando se alinhar à filosofia de abertura do judiciário proporcionando a população maior conhecimento das práticas e vivencias da justiça.

O CDH vem desenvolvendo trabalhos de relevância como, a organização de grupo de pesquisa para produção de artigos sobre variados temas destacando-se levantamento de dados sobre o Presídio da Ilha de Santo Antonio, o Projeto Grandes Júris, além da utilização dos documentos do acervo para pesquisa sobre imigração, migração, menores, mulheres, política, trabalhadores, economia, etc. O acervo também é utilizado como fornecedor de fontes primárias para monografias, dissertações e artigos, oportunizando a alunos universitários a aprendizagem na prática teórica e metodológica de pesquisa em acervos de documentos escritos.

Um dos trabalhos que vem sendo desenvolvido pelo CDH busca os registros dos espaços ocupados pelo Poder Judiciário de Rondônia na memória coletiva da cidade de Porto Velho.

Onde estão as homenagens às figuras do judiciário? Dentro do próprio espaço do judiciário as homenagens são feitas aos juízes e desembargadores, restrito aos espaços internos da justiça, ocupando apenas o que poderíamos chamar de memória doméstica.

Observando o tema ainda não está esgotado, em levantamento na cidade de Porto Velho encontramos a rua Nathanael de Albuquerque, conhecida por alguns como a Rua da Palha. Esse parece ter sido seu primeiro nome e que nos indica tenha sido herdado dos migrantes maranhenses, uma vez que existe na cidade histórica de São Luís uma rua com esta denominação. Na verdade uma pequena ruela de menos de duas quadras onde se localizam alguns restaurantes populares, estacionamento rotativo e os fundos de uma agência bancária. Uma pequena ruela onde flanelinhas e desocupados perambulam. Não encontramos a placa de indicação do nome da rua, apenas na fachada de um estabelecimento, o proprietário colocou o numero do prédio e nome da rua. Nathanael de Albuquerque é o nome encontrado nos primeiros processos da Vila de Porto Velho no ano de 1914. Os fragmentos nos indicam que ele tenha exercido suas funções de Juiz Municipal do ano de 1914 a 1916.

Encontramos outro registro em Candeias do Jamari. Naquela localidade a Escola Estadual de Ensino Fundamental Teodoro Assunção, presta homenagem a Theodoro Vaz de Abreu Assumpção, juiz que pertencia ao quadro dos juizes federais e que atuou na Comarca de Porto Velho na década de quarenta do século XX. A escola foi criada no ano de 1948, e atende hoje 470 crianças nas modalidades Ensino Fundamental e Seriado fundamental e médio. O nome de Theodoro Vaz de Abreu Assumpção é encontrado nos processos, nas atas de audiências e sentenças de 1947 até 1955. Seu nome consta ainda da cerimônia de lançamento da pedra fundamental para a construção do prédio da justiça do Território de Rondônia. Nos dois casos há problemas com a grafia dos nomes.

Anotamos ainda, a homenagem prestada a Fouad D. Zacharias em residencial ou bairro que não foi possível a localização em razão da falta de indicação em face de sua recente formação.

Considerando os quase cem anos de atividades judiciárias na região, observamos que três personagens apenas conseguiram ser preservados e de maneira bastante tímida no espaço coletivo, ou seja, são espaços secundários dentro do sistema viário urbano. As principais homenagens são destinadas aos integrantes do Poder Executivo, Legislativo, Executivo ou da Igreja.

Essas nossas observações quanto a importância dos registros de memória do poder judiciário nos espaços coletivos não são com relação ao poder ser homenageado, a um prazer da homenagem pelo simples prazer do homenageado. Esse lembrar o qual estamos falando tem por finalidade registrar as experiências e as vivencias dos indivíduos dentro da instituição, e muito mais do que homenagear figuras ilustres tem a finalidade de ir demarcando os espaços na memória coletiva.

O lembrar não é o homenagear para obter um status ou uma comemoração apenas. Não é aquele momento inicial do sair nos jornais, nas colunas sociais como figura homenageada. O lembrar, inserido na memória coletiva é uma forma de cristalizar as lembranças, torna-las parte da vida das pessoas como forma de continuidade. Nós reconstruímos através das lembranças, das marcas identitárias que registram a existência, criamos significados, criando uma realidade através do hábito de resiginificar a vida, porque nós não inventamos a vida, nos estamos inseridos nela.

Vamos retomar alguns marcos da História Regional para entendermos o processo de ocupação dos espaços de memória coletiva na cidade de Porto Velho. A identidade, unidade e continuidade foram mantidas. Rondon, Aluisio, Teixeira, são os personagens que delimitam os períodos. Essas três figuras realmente formam a tríade que sustenta a memória do que hoje conhecemos por Rondônia. Lembramos do inicio do século XX e a presença do Marechal Candido Rondon, ao tempo que ocorria a epopéia da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Aluisio Ferreira e o heróico ato da nacionalização, a construção dos espaços e a organização da elite local, e por último Jorge Teixeira de Oliveira que dirigiu o último ato do espetáculo, “criando” o Estado de Rondônia.

Assim, o próprio nome do Estado “Rondônia” homenageia Rondon. Duas das mais importantes praças da cidade de Porto Velho homenageiam Marechal Candido Rondon e Aluisio Ferreira. Uma das grandes avenidas que dá acesso ao espaço da cidade para quem vem pela BR 364, passando pela Rodoviária e que chega ao aeroporto Jorge Teixeira de Oliveira presta homenagem a sua importante figura.

Uma rua presta homenagem a Percival Farquar, nome ligado a construção da ferrovia. Outras homenageiam, Afonso Pena, Campos Sales, Marechal Deodoro, D. Pedro II, Getúlio Vargas, figuras do cenário nacional. Importante via de acesso do centro a Vila Militar do 5º BEC, homenageia Rogério Weber, filho de um comandante militar dos anos sessenta, registrando a importância que a região deu ao longo dos anos aos militares.

Saindo do centro da cidade vamos encontrar ruas com nomes de Estados da Federação, de países, nomes que homenageiam figuras de famílias importantes. Ainda avenidas importantes de acesso trazem referencias regionais, como Guaporé, Madeira, Calama, Abunã/Joaquim Araújo Lima que foi governador do Território e escreveu o hino de Rondônia. O autor da música foi José de Melo e Silva, que exerceu as funções de Juiz de Direito na cidade de Porto Velho e Guajará-Mirim na década de 40, poucas vezes citado, muito embora seja figura ilustre no Estado do Mato Grosso do Sul a quem atualmente vem sendo dedicado diversos estudos naquele Estado. Por fim ainda ruas identificadas por números, como uma reserva técnica para mais homenagens.

Os bairros fazem homenagem a políticos e suas ruas prestam homenagem a pequenos heróis, poetas locais, médicos ou advogados que estiveram envolvidos em atividade de alcance popular.

Voltando ao caso do judiciário e a falta de representatividade na memória coletiva, observamos ainda que os prédios do judiciário, em sua maioria não remetem a memória do que representa justiça. São prédios comuns, adaptados, emprestados. É preciso chegar muito próximo e ler uma pequena placa nem sempre visível aos transeuntes.

O prédio do Fórum Criminal, construído na década de 40, era chamado Fórum Rui Barbosa. Hoje a placa à entrada do prédio registra que o prédio é Fouad Darwich Zacarias homenageando o jurista a quem coube a organização do poder judiciário do Estado de Rondônia no ano de 1982, sendo o primeiro desembargador do Tribunal de Justiça. Quando a isso devemos observar que a troca foi bastante justa, muito embora na memória popular, ainda se fala em Fórum Rui Barbosa, aquele construído na década de 40 cuja fachada exibia colunas que faziam lembrar a suntuosidade dos prédios gregos e romanos, e que passou por tantas reformas perdendo definitivamente suas características.

Os nomes que fizeram parte das atividades da justiça até a década de oitenta do século XX, pertenciam ao Tribunal de Justiça do Amazonas do Mato Grosso e à Justiça Federal.

Os juízes que atuaram na Comarca de Santo Antonio do Rio Madeira pertenciam ao Mato Grosso e com a criação do Território Federal do Guaporé e posteriormente o Território Federal de Rondônia a memória do passado foi cancelada.

A constante perda de identidade faz com que o lugar pareça ser sempre de passageiros e isso o descaracteriza, fazendo com que pareça um não-lugar, um lugar desprovido de continuidade, de imagens. As lembranças são de um outro tempo, de um outro lugar. Parecem cidades sobrepostas, descontinuas, onde a importância é dada pela geografia e pela política esquecendo-se do material humano que dá vida a esses espaços.

Essas observações não possuem o intuito de criticar ou reivindicar homenagens, mas servem como uma reflexão, pois como sabemos os espaços de memória são construídos politicamente por meio das relações e indicações da elite e muito embora o judiciário seja considerado elite, não o é assim reconhecido pela elite oficial.



[1] Coordenadora do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia.